segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O Lado Obscuro

por Phillip Starr

Para muitos entusiastas das artes marciais, o principal objetivo do treinamento é tornar-se mais forte, mais rápido, e dominar técnicas de luta e táticas de maneira a derrotar qualquer agressor que ouse atacá-lo. As técnicas básicas são ensaiadas vez após vez enquanto os músculos gritam por socorro e a respiração se torna ofegante. As formas são praticadas vez após vez, e depois estudadas e analisadas até ao ínfimo pormenor até que o seu verdadeiro significado seja entendido. Os estudantes deixam seu sangue nos postes de golpeio e seu suor no chão da sala de treinamento. Mas, por debaixo de tudo isso existe algo mais, algo pessoal, insidioso e obscuro.

Todos nós enfrentámos tempos difíceis e momentos em que fomos “testados” enquanto caminhávamos pelo trilho marcial. Essas dificuldades surgiram em todos os formatos e tamanhos, desde lesões mais ou menos graves, doenças, atrasos, perda de interesse, problemas com relações… e simplesmente não existe uma maneira de intelectualizar ou comprar uma solução para isso. Muitas vezes temos que trabalhar e até lutar com as dificuldades em nosso caminho e outras vezes nos resta apenas ranger os dentes e esperar que passem. Algumas vezes, simplesmente permanecer no caminho é tudo o que pudemos fazer. O legendário fundador do aikido, Morihei Uyeshiba expôs o problema sucintamente:

“ Em situações extremas parece que o universo inteiro se tornou nosso inimigo.
   Em tempos tão críticos a unidade de corpo e mente é essencial.
   Não deixe o seu coração vacilar.
   Corajosamente enfrente seja o que fôr que Deus tem para lhe dar.
   Você deve estar preparado para receber 99% do ataque do inimigo e olhar para a morte de   
   frente de forma a iluminar o caminho.
   Transcenda o domínio da vida e da morte e você estará preparado para seguir seu caminho 
   pela vida com calma e segurança através de qualquer crise com que seja confrontado.”



Na prática das artes marciais teremos de nos confrontar eventualmente com nossa “sombra”. Todos nós temos medos, desde um simples medo do escuro até medo de dores, ruína financeira, solidão e doença. Apesar desses medos parecerem surgir de fora de nós, penso serem frequentemente o resultado de um processo interno. Esse pode ser um processo do qual não estamos conscientes, um processo que decorre por detrás de nossa personalidade na superfície. No treinamento nos esforçamos por ter um bom desempenho, mesmo sob pressão. Não costuma demorar muito para que problemas recalcados venham à superfície: más atitudes, inveja, auto-piedade, crítica (a si mesmo e a outros), inseguranças, raiva, despontam à superfície como bolhas e são presenciados por todos. Você não os pode esconder apesar de tentar fazê-lo e então torna-se óbvio que está tentando esconder essas coisas!
O que é um fato é que temos vivido com essas “sombras” por tanto tempo, que acabámos desenvolvendo formas pessoais de lidar com elas. Elas se tornaram parte de nós, hábitos se assim desejarem, e nós nos acostumamos tanto a carregá-las connosco que nem sequer nos apercebemos de sua existência até nos envolvermos no treinamento das artes marciais, o que na verdade é bastante diferente de outras atividades físicas, pois estamos lidando com a forma mais básica das relações humanas… um soco na boca. Temos de aprender a responder de maneira apropriada a um ataque, enquanto simultaneamente temos de estar “com nós mesmos” sob níveis de pressão física e emocional que aumentam gradualmente.

Cedo teremos de encarar as maneiras como geralmente enfrentamos essas e outras formas de estresse; como criamos uma armadura contra elas, como nos retiramos (para nosso interior) ou atacamos de forma agressiva, e aquilo que vemos não é agradável. Ficamos expostos não apenas a nós mesmos mas também a nossos companheiros de treinamento. A forma como nos defendemos sob grande pressão (como quando um parceiro de treinamento tenta nos dar um soco na cara) nos mostra como trabalhamos para sobreviver na vida diária.

Como disse Wilhelm Reich, seu corpo se comporta como uma “prisão” que o “segura” (ou aquilo que você percebe como “você”) em seu lugar. Apesar de você conseguir ver uma porta aberta à sua frente, você fica encarcerado em sua “prisão” por suas crenças limitadoras, atitudes e assim por diante.

Um instrutor competente e atencioso vai enxergar imediatamente naquilo que você está enxergando mas não vai poder lhe dar de presente uma “cura” intantânea. Tudo o que poderá fazer será encorajá-lo e guiá-lo e você deverá escutá-lo. Ele já esteve onde você está agora. A arte marcial de sua escolha pode ser usada como ferramenta para explorar essas coisas que você considera indesejáveis em você: seus medos, aquilo que o ameaça, sentimentos de inadequação e inferioridade e por aí em diante. É nesse momento, quando reconhecemos diferentes aspectos de nosso “lado obscuro” que devemos levar o conselho do mestre Uyeshiba a peito.

Você enfrenta seu adversário (seu parceiro de treinamento) e ele se transforma em você. Você projeta seus medos, suas fraquezas e até seus pontos fortes nele e os confronta enquanto pratica o combate, e enquanto se esforça por “não perder”, não é realmente o seu adversário que você está tentando derrotar. É seu “lado sombra”. É por isso que praticar o combate é tão importante, porque no combate de verdade se passa o mesmo. O seu adversário é um espelho, quer se trate de um parceiro de treinamento ou de um assaltante de verdade.

Eu acredito que a disposição para enfrentar o nosso “lado obscuro” e o empenho em compreender e eventualmente superar nossas fraquezas, medos e as muitas coisas acerca de nós mesmos que preferíamos manter escondidas, é aquilo que faz um verdadeiro guerreiro. Você deve começar por ser suficientemente corajoso para admitir a verdade daquilo que você vê em si mesmo. Depois, tem de ser forte o suficiente para resolver essas facetas de si mesmo que considera indesejáveis. Isso pode ser conseguido através do treinamento correto das artes marciais, mas não é fácil, e muitos estudantes desistirão de seu treinamento de maneira a evitarem terem de se encarar, apesar de muitos, talvez a grande maioria, não esteja consciente de que esse é o motivo de sua desistência.




Recordemos as palavras de mestre Uyeshiba acima escritas:

“ Em situações extremas parece que o universo inteiro se tornou nosso inimigo.”
(Alguma vez se sentiu como se o mundo inteiro, talvez o universo inteiro, estivesse contra você?)

“Em tempos tão críticos a unidade de corpo e mente é essencial.”
Reconheça primeiramente a situação e os sentimentos que desperta. Depois, concentre-se e pratique a respiração reversa. Unifique seu corpo e mente!)

“Não deixe o seu coração vacilar.”
(Não se entregue ao medo. Nem sequer considere a possibilidade de desistir ou falhar. Nunca. Essas não são opções.)

“Corajosamente enfrente seja o que fôr que Deus tem para lhe dar.”
(Enfrente seus problemas de uma forma direta e lembre-se que cada problema que você enfrenta tem uma dádiva escondida para lhe oferecer.)

“Você deve estar preparado para receber 99% do ataque do inimigo e olhar para a morte de    frente de forma a iluminar o caminho.”
(Como diz uma velha máxima japonesa: “Só vivemos duas vezes. Uma quando nascemos e  a outra quando olhamos a morte na cara.”)

“Transcenda o domínio da vida e da morte e você estará preparado para seguir seu caminho 
pela vida com calma e segurança através de qualquer crise com que seja confrontado.”


(Quando tiver conquistado seu medo em relação à morte, você poderá seguir seu caminho calmamente através de qualquer crise que surja.)

(artigo traduzido  e publicado com autorização do autor)