por Phillip Starr
Para muitos entusiastas das artes marciais, o principal objetivo do
treinamento é tornar-se mais forte, mais rápido, e dominar técnicas de luta e
táticas de maneira a derrotar qualquer agressor que ouse atacá-lo. As técnicas
básicas são ensaiadas vez após vez enquanto os músculos gritam por socorro e a
respiração se torna ofegante. As formas são praticadas vez após vez, e depois
estudadas e analisadas até ao ínfimo pormenor até que o seu verdadeiro
significado seja entendido. Os estudantes deixam seu sangue nos postes de
golpeio e seu suor no chão da sala de treinamento. Mas, por debaixo de tudo
isso existe algo mais, algo pessoal, insidioso e obscuro.
Todos nós enfrentámos tempos difíceis e momentos em que fomos “testados”
enquanto caminhávamos pelo trilho marcial. Essas dificuldades surgiram em todos
os formatos e tamanhos, desde lesões mais ou menos graves, doenças, atrasos,
perda de interesse, problemas com relações… e simplesmente não existe uma
maneira de intelectualizar ou comprar uma solução para isso. Muitas vezes temos
que trabalhar e até lutar com as dificuldades em nosso caminho e outras vezes
nos resta apenas ranger os dentes e esperar que passem. Algumas vezes,
simplesmente permanecer no caminho é tudo o que pudemos fazer. O legendário
fundador do aikido, Morihei Uyeshiba expôs o problema sucintamente:
“ Em situações extremas parece que o universo inteiro se tornou nosso
inimigo.
Em tempos tão críticos a unidade
de corpo e mente é essencial.
Não deixe o seu coração vacilar.
Corajosamente enfrente seja o que
fôr que Deus tem para lhe dar.
Você deve estar preparado para
receber 99% do ataque do inimigo e olhar para a morte de
frente de forma a iluminar o
caminho.
Transcenda o domínio da vida e da
morte e você estará preparado para seguir seu caminho
pela vida com calma e segurança
através de qualquer crise com que seja confrontado.”
Na prática das artes marciais teremos de nos confrontar eventualmente com
nossa “sombra”. Todos nós temos medos, desde um simples medo do escuro até medo
de dores, ruína financeira, solidão e doença. Apesar desses medos parecerem
surgir de fora de nós, penso serem frequentemente o resultado de um processo
interno. Esse pode ser um processo do qual não estamos conscientes, um processo
que decorre por detrás de nossa personalidade na superfície. No treinamento nos
esforçamos por ter um bom desempenho, mesmo sob pressão. Não costuma demorar
muito para que problemas recalcados venham à superfície: más atitudes, inveja,
auto-piedade, crítica (a si mesmo e a outros), inseguranças, raiva, despontam à
superfície como bolhas e são presenciados por todos. Você não os pode esconder
apesar de tentar fazê-lo e então torna-se óbvio que está tentando esconder
essas coisas!
O que é um fato é que temos vivido com essas “sombras” por tanto tempo, que
acabámos desenvolvendo formas pessoais de lidar com elas. Elas se tornaram
parte de nós, hábitos se assim desejarem, e nós nos acostumamos tanto a
carregá-las connosco que nem sequer nos apercebemos de sua existência até nos
envolvermos no treinamento das artes marciais, o que na verdade é bastante
diferente de outras atividades físicas, pois estamos lidando com a forma mais
básica das relações humanas… um soco na boca. Temos de aprender a responder de
maneira apropriada a um ataque, enquanto simultaneamente temos de estar “com
nós mesmos” sob níveis de pressão física e emocional que aumentam gradualmente.
Cedo teremos de encarar as maneiras como geralmente enfrentamos essas e
outras formas de estresse; como criamos uma armadura contra elas, como nos
retiramos (para nosso interior) ou atacamos de forma agressiva, e aquilo que
vemos não é agradável. Ficamos expostos não apenas a nós mesmos mas também a
nossos companheiros de treinamento. A forma como nos defendemos sob grande
pressão (como quando um parceiro de treinamento tenta nos dar um soco na cara)
nos mostra como trabalhamos para sobreviver na vida diária.
Como disse Wilhelm Reich, seu corpo se comporta como uma “prisão” que o
“segura” (ou aquilo que você percebe como “você”) em seu lugar. Apesar de você
conseguir ver uma porta aberta à sua frente, você fica encarcerado em sua
“prisão” por suas crenças limitadoras, atitudes e assim por diante.
Um instrutor competente e atencioso vai enxergar imediatamente naquilo que
você está enxergando mas não vai poder lhe dar de presente uma “cura”
intantânea. Tudo o que poderá fazer será encorajá-lo e guiá-lo e você deverá
escutá-lo. Ele já esteve onde você está agora. A arte marcial de sua escolha
pode ser usada como ferramenta para explorar essas coisas que você considera
indesejáveis em você: seus medos, aquilo que o ameaça, sentimentos de
inadequação e inferioridade e por aí em diante. É nesse momento, quando
reconhecemos diferentes aspectos de nosso “lado obscuro” que devemos levar o
conselho do mestre Uyeshiba a peito.
Você enfrenta seu adversário (seu parceiro de treinamento) e ele se
transforma em você. Você projeta seus medos, suas fraquezas e até seus pontos
fortes nele e os confronta enquanto pratica o combate, e enquanto se esforça
por “não perder”, não é realmente o seu adversário que você está tentando
derrotar. É seu “lado sombra”. É por isso que praticar o combate é tão
importante, porque no combate de verdade se passa o mesmo. O seu adversário é
um espelho, quer se trate de um parceiro de treinamento ou de um assaltante de
verdade.
Eu acredito que a disposição para enfrentar o nosso “lado obscuro” e o
empenho em compreender e eventualmente superar nossas fraquezas, medos e as
muitas coisas acerca de nós mesmos que preferíamos manter escondidas, é aquilo
que faz um verdadeiro guerreiro. Você deve começar por ser suficientemente
corajoso para admitir a verdade daquilo que você vê em si mesmo. Depois, tem de
ser forte o suficiente para resolver essas facetas de si mesmo que considera
indesejáveis. Isso pode ser conseguido através do treinamento correto das artes
marciais, mas não é fácil, e muitos estudantes desistirão de seu treinamento de
maneira a evitarem terem de se encarar, apesar de muitos, talvez a grande
maioria, não esteja consciente de que esse é o motivo de sua desistência.
Recordemos as palavras de mestre Uyeshiba acima escritas:
“ Em situações extremas parece que o universo inteiro se tornou nosso
inimigo.”
(Alguma vez se sentiu como se o mundo inteiro, talvez o universo inteiro,
estivesse contra você?)
“Em tempos tão críticos a unidade de corpo e mente é essencial.”
Reconheça primeiramente a situação e os sentimentos que desperta. Depois,
concentre-se e pratique a respiração reversa. Unifique seu corpo e mente!)
“Não deixe o seu coração vacilar.”
(Não se entregue ao medo. Nem sequer considere a possibilidade de desistir
ou falhar. Nunca. Essas não são opções.)
“Corajosamente enfrente seja o que fôr que Deus tem para lhe dar.”
(Enfrente seus problemas de uma forma direta e lembre-se que cada problema
que você enfrenta tem uma dádiva escondida para lhe oferecer.)
“Você deve estar preparado para receber 99% do ataque do inimigo e olhar
para a morte de frente de forma a
iluminar o caminho.”
(Como diz uma velha máxima japonesa: “Só vivemos duas vezes. Uma quando
nascemos e a outra quando olhamos a
morte na cara.”)
“Transcenda o domínio da vida e da morte e você estará preparado para
seguir seu caminho
pela vida com calma e segurança através de qualquer crise com que seja confrontado.”
(Quando tiver conquistado seu medo em relação à morte, você poderá seguir
seu caminho calmamente através de qualquer crise que surja.)
(artigo traduzido e publicado com autorização do autor)
(artigo traduzido e publicado com autorização do autor)
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